Mulheres e Magistério

O espaço da escola é um microcosmo da sociedade. Todas as realidades que estão presentes em nossa organização social mais ampla desemboca no ambiente escolar. A questão da mulher na sociedade tem sido debatida em muitas instâncias, e precisamos fazer isso também no contexto da educação formal. Um grande contingente de profissionais da educação são mulheres, em todos os níveis e modalidades de ensino. Isso tem implicações nas relações que acontecem no interior da escola, com mulheres estudantes, professoras, pedagogas, gestoras etc. Essas implicações repercutem no trânsito social, econômico, trabalhista e pedagógico. E há condições históricas que nos ajudam a entender um pouco melhor essas realidades. A Professora Elda Alvarenga, abordou o tema no livro "Professoras primárias: profissionalização e feminização do magistério capixaba", publicado pela Editora Cousa, em 2008:

A obra é uma adaptação da tese de doutorado de Elda Alvarenga, defendida em janeiro de 2018. Relata os resultados da investigação sobre o processo histórico de inserção das mulheres no magistério primário público e seus desdobramentos para o trabalho docente no Estado do Espírito Santo, no período de 1845-1920. O livro trata dos principais elementos que permearam a passagem de uma profissão inicialmente exercida exclusivamente por homens, para uma atividade profissional feminizada, utilizando, como eixos de análise, a expansão do acesso à escolarização, as reformas na instrução pública e a atuação da Escola Normal no processo de ocupação feminina do magistério público e da sua posterior feminização.

Elda Alvarenga possui graduação em Pedagogia (1996), mestrado em Educação (2004) e doutorado em Educação (2018) pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é professora substituta do Instituto Federal de Educação do Espírito Santo/Campus Cachoeiro. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Fundamentos da Educação, Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, gênero, formação de professores, diversidade sexual; história das mulheres e pesquisa educacional. É membro do Nucaphe (Núcleo capixaba de pesquisa em história da educação (PPGE/Ufes) e coordenadora do Nupeges (Núcleo interinstitucional de pesquisa em gênero e sexualidades). Você pode fazer contato com Elda, Para maiores informações sobre a pesquisa e o livro ou para contactar a autora, utilize o endereço eletrônico eldaalvarenga@uol.com.br

Entrevista com Elda Alvarenga, realizada em 04/03/2021:

APOIE: Gostaria que você falasse em linhas gerais sobre o teor de sua publicação e como nasceu o interesse por pesquisar essa temática.

Elda Alvarenga: Agradeço a oportunidade de socializar minha produção acadêmica, que é também uma produção pedagógica e de militância. Só vale a pena produzir e pesquisar se isso chega ao público da escola, principalmente às professoras e aos professores. Faço um recorte da história do magistério capixaba, no período de quase cem anos, de 1845 a 1920. Acho muito interessante isso chegar ao professorado da SEDU.

O que me motivou a produzir a tese, que depois se transformou em livro, tem a ver com minha história profissional. Sou professora formada no Ensino Normal, lecionando desde 1989. Fiz Pedagogia na UFES, tinha dezessete anos e me envolvi com o movimento sindical, desde que ingressei no magistério, no município de Viana, atuando posteriormente como professora na rede estadual também. No movimento sindical fui apresentada ao movimento de mulheres e às discussões sobre gênero. Tive acesso a uma formação política que o sindicato ofertava, numa Secretaria de Política para as Mulheres, com um eixo de formação específico voltada às questões de gênero. Eu me interessava não só pela questão de gênero no magistério, mas também no interior de toda a sociedade. Fiz o mestrado, estudando algo que me inquietava muito, a feminização e a escolarização do magistério, observando como a escola também mantém relações sexistas, ao mesmo tempo que as descontrói. O mestrado foi a articulação entre a militância e a formação acadêmica, estudando a teoria sobre gênero. Isso me abriu a inserção em outros campos de atuação, mas sempre privilegiando a relação entre gênero e educação. Fiquei afastada da sala de aula por um tempo, exercendo outras funções dentro do magistério. Saí da Educação Básica e passei a trabalhar no Ensino Superior, trabalhando com a formação de professores no Curso de Pedagogia. Depois de alguns anos, ingressei no doutorado, dez anos depois de concluir o mestrado, e desejei continuar estudando sobre gênero, sobre mulheres e sobre o magistério. Fui apresentada à tese da professora Jane de Almeida, que discute como as mulheres ingressaram no magistério paulista. Vi que era isso que eu queria fazer em relação ao magistério capixaba. Articulei, assim, um outro eixo de pesquisa voltada para a história da educação, ampliando meu olhar. Sobre a orientação da professora Regina Helena Simões, cheguei ao projeto de pesquisa, pensando em como e quando uma profissão que era ocupada essencialmente por homens passa a ser ocupada por mulheres e quais os fatores sociais que foram determinantes para que isso acontecesse, considerando que, em menos de cem anos, o magistério passa a ser ocupado majoritariamente por mulheres, especialmente no magistério primário. Busquei, assim, entender um pouco essa história da educação no Espírito Santo. O teor da pesquisa se apoia em três eixos principais: quando e como se deram as contradições e tensões que levaram à inserção das mulheres no magistério; como a formação das mulheres, enfocando principalmente a escola Normal, contribuiu para esse processo; e busquei reconstituir, finalmente, como essa profissão originariamente masculina vai se tornando feminilizada.

APOIE:  Quais foram as consequências históricas daquilo que você chama “feminização” do magistério capixaba, para a educação em geral e para as mulheres profissionais de educação?

Elda Alvarenga: Quando as mulheres entraram no magistério e com o processo gradual de feminização do magistério, costumo dizer que nós, mulheres, reinventamos essa profissão. O fato de nossa profissão ser constituída majoritariamente por mulheres vai impactar sempre na educação que acontece na escola. Somos mulheres, mães, companheiras, filhas, avós, e isso impacta no exercício da profissão no interior da escola, porque essas outras dimensões da vida humana se materializam no exercício do trabalho de professora. O trabalho é muito do que somos. Citando Antônio Novoa, o trabalho forma a gente como pessoa, e a pessoa que nós somos nos forma como profissionais. Jane de Almeida diz que quando as mulheres foram chamadas ao magistério, porque, diferente do que imaginam sobre a entrada das mulheres nesse campo, atribuindo isso a uma ausência de homens e diminuição da importância e consequente desvalorização da profissão, as mulheres foram chamadas a ocupar uma demanda real. Uma das gratas surpresas que percebi na minha pesquisa foi que essa inserção se deu para ocupar um lugar que foi destinado a elas, por uma necessidade política, social, econômica e, sobretudo, religiosa, na época. Nós reconstruímos essa profissão. Após a inserção das mulheres no magistério e o processo de feminização da profissão, o magistério teve sua dinâmica do trabalho alterada. Obviamente, isso tudo foi impulsionado pelos movimentos republicanos, pela Constituição da República Brasileira, que abriu a possibilidade do trabalho das mulheres nesse campo, e isso alterou a escola. Não dá para dizer que uma profissão composta predominantemente por mulheres funciona nos mesmos matizes, nas mesmas metodologias do que as profissões de presença predominante masculina. Feminizar o mundo, agora cito Boaventura de Souza Santos, significa apontar que os valores femininos são mais humanizados, valores do cuidado, da valorização e manutenção da vida, por isso, quando feminizamos o magistério, nós também o humanizamos mais. E quando falamos do feminino aqui, falamos de uma construção sociocultural e histórica. Outra consequência, foi o que a entrada das professoras no trabalho público possibilitou, porque elas trabalhavam, mas apenas no espaço doméstico. O magistério foi a primeira profissão pública exercida pelas mulheres, o que, simbolicamente, foi muito importante. Somos pioneiras. Muitas mulheres se dedicaram ao magistério, porque não podiam exercer outras profissões. A partir dessa entrada no espaço público via magistério, isso abriu a porta para que as mulheres lutassem para ocupar outros espaços públicos, em outras profissões, gradativamente.

                   

APOIE: Como você avalia a presença feminina na educação hoje no estado do Espírito Santo?

Elda Alvarenga: O Espírito Santo não foge ao restante do Brasil. Ainda persiste, apesar dos avanços nos planos de salários do magistério, de um modo geral, a condição de, quanto menor o nível de ensino, mais professoras e menos professores. Ainda hoje, há majoritariamente a presença de professoras na Educação Infantil, por exemplo. A entrada de homens nesse nível de ensino é ínfima ainda, e rodeada de muito preconceito. Eles sofrem muito para entrar nesses espaços. Nos estágios que acompanhei, eu levava mulheres e homens, esses em número bem menor, mas percebia algumas vezes o desgosto das profissionais da escola, quando eu apresentava um homem como estagiário. Apesar disso, há um crescimento da presença masculina gradativa em todos os níveis. Os homens estão voltando a todos os níveis de ensino. Isso é muito bom. Nunca quisemos um espaço apenas para mulheres na educação. A presença de homens é muito saudável. O que sempre desejamos foram condições igualitárias de acesso e desenvolvimento na profissão. Os concursos públicos hoje democratizam a entrada de quem desejar. Outro ponto: ainda há mais homens no Ensino Superior, mas isso está mudando nas últimas décadas. Nas exatas, percebe-se também mais a presença masculina, mas isso também está gradativamente mudando. Isso tem raízes históricas. As mulheres, como vi na minha pesquisa, inicialmente só podiam estudar prendas domésticas. O acesso ao estudo dos fundamentos da ciência era negado a elas. Nas funções de gestão da educação também a presença feminina é ainda inferior à dos homens.  E isso é decorrente da visão patriarcal de liderança em todos os espaços sociais. A representação do masculino como autoridade e tendo o poder da fala ainda carece de avanços, porque essas relações de gênero extrapolam o âmbito da escola. São questões com as quais lidamos no seio da sociedade.

 

APOIE: Quais desafios estão colocados atualmente para as mulheres atuantes na área educacional, no seu entender?

Elda Alvarenga: Eu diria que avançamos muito. Nossa profissão não é mais vista como sacerdócio e missão, mas tem resquícios de toda essa história. Fomos ocupando os espaços como mulheres, subvertendo os lugares que o Estado e a Igreja esperavam de nós, mas ainda há condições a alcançar. Jane de Almeida diz que fizemos não só o que se esperava de nós. Mas precisamos ainda hoje de ações afirmativas constantes, para superarmos as contradições de nossos espaços profissionais, lidando com as representações sociais sobre nós mulheres, na escola e em toda a sociedade. Feminizar a educação não significa deixar de ter rigor e critério profissional, por exemplo. Neste tempo, em especial, da pandemia, feminizar significa valorizar a manutenção da vida, o cuidado com o outro. Qualquer instituição social precisa ter isso em mira. E isso tem variadas implicações para nós mulheres, que além de professoras, somos donas de casa, mães etc. Outro desafio é o debate permanente em torno da valorização do magistério, não só salarialmente, mas em todos os âmbitos, nas condições de trabalho, inclusive na liberdade de cátedra, tão fragilizada hoje. A questão da participação da mulher nos espaços de gestão ligados à educação também são espaços cada vez mais a serem ocupados. E, por fim, a importância de se registrar a história das mulheres e a história do magistério. Precisamos também caminhar mais nos registros históricos da realidade do magistério, uma contribuição também da minha pesquisa. Antônio Novoa fala que “Essa profissão precisa de se dizer e de se contar. É uma maneira de a compreender em toda a sua complexidade humana. É que ser professor abriga opções constantes, que cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar. Que desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser”. Sou defensora da escola. A escola produz muita coisa bacana, mas não temos o cuidado de registrar. Isso acaba por contribuir com uma desvalorização da nossa profissão. As construções representativas e históricas impactam o nosso fazer na escola.

 

APOIE: Agradecemos sua participação, Elda, e a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre seu trabalho. Você tem agora um espaço, então, para fazer as suas últimas considerações.

Elda Alvarenga: Também agradeço a oportunidade. É muito importante que o meu trabalho de pesquisa, de alguma forma seja devolvido à escola, especialmente a escola pública. Por último, queria enfatizar que o referencial que nos orienta nesse movimento das mulheres nunca é um movimento contra os homens, mas um movimento de equidade para todos. Buscamos a valorização e o respeito às mulheres, valorizando sua história. Isso nunca será contra os homens. Homens e mulheres merecem espaços igualitários na sociedade. Não somos melhores que os homens. Também não somos piores. Nossa luta não é contra eles. Os homens também têm suas dores, muitas vezes de terem pouco espaço reconhecido para demonstração de afeto, por exemplo. E isso é importante para todas e todos. Nossa luta acaba por beneficiar a todo o magistério, mulheres e homens.